transformacao digital industria farmaceutica

 

Os gastos com saúde crescem exponencialmente em todo o mundo e, segundo relatório recentemente divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), já equivalem a 10% do Produto Interno Bruto (PIB) global.

Na avaliação de especialistas, a eScience – termo usado para se referir às pesquisas multidisciplinares que lidam com grandes volumes de dados ou usam métodos computacionais sofisticados – pode ser uma ferramenta para aumentar a eficiência dos processos nesse setor, reduzir gastos com insumos e melhorar a prestação de serviços à população.

A avaliação foi feita pelos participantes do evento "Ciência e inovação digital em saúde", realizado no dia 2 de outubro na sede da FAPESP.

O objetivo do encontro foi discutir como a pesquisa e a inovação na ciência de dados e o desenvolvimento de novos equipamentos estão solucionando alguns desafios da área da saúde e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida do cidadão.

“Inovações podem, seguramente, induzir ganhos de eficiência na área de saúde e a ciência de dados terá um papel fundamental nisso”, disse Rudi Rocha, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV), durante o evento.

De acordo com o pesquisador, os gastos em saúde no mundo totalizam hoje US$ 10 trilhões e estima-se que, nas próximas duas décadas, devem chegar a US$ 24 trilhões. Uma das razões é o aumento da longevidade, resultante de avanços nas ciências da saúde.

Essa escalada de gastos, consequentemente, deve aumentar as tensões entre os três principais agentes do sistema de saúde no mundo: os pacientes, os provedores – hospitais, médicos, laboratórios e indústrias farmacêuticas – e as seguradoras.

“Muito por conta da assimetria de informações que não conseguem resolver, esses três atores vivem em conflito. Essas tensões tendem a aumentar à medida que os gastos e, consequentemente, a complexidade desse sistema aumentar”, avaliou.

Em razão das tensões crescentes no setor, diversos países, principalmente os desenvolvidos, estão implementando reformas para tornar seus sistemas de saúde sustentáveis do ponto de vista financeiro, porém, sem ter um modelo ideal a seguir.

Essa agenda, contudo, ainda não chegou a países como o Brasil, afirmou Rocha. “Ainda estamos discutindo a reforma da Previdência, mas no exterior tem sido feita uma série de reformas nos sistemas de saúde, que não se sabe quais serão suas consequências”, disse.

Nos países de renda alta, como os do Reino Unido e a Suécia, mais de 50% dos gastos em saúde são feitos pelo governo, enquanto no Brasil o gasto privado nessa área, equivalente a 55% do total, é maior do que o público – equivalente a 45%, a despeito de o país ter um sistema de saúde público universal.

A fim de melhorar a eficiência nesses dispêndios, os países têm tentado elaborar novos modelos de contratos com os três atores do sistema de saúde, afirmou Rocha.

“A eScience pode ajudar não apenas por meio de inovações digitais em bens e serviços de saúde, mas principalmente mitigando as falhas informacionais e as tensões entre os três atores do sistema de saúde e apoiando a gestão de sistemas”, avaliou.

 

Big data em hospitais

No ambiente hospitalar, instituições como o Hospital Israelita Albert Einstein já estão usando análises de big data para melhorar a eficiência de seus processos e a qualidade dos serviços prestados.

A fim de garantir a agilidade na assistência de pacientes em suas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), um grupo de pesquisadores do grupo de análises de big data da instituição desenvolveu um modelo para ajustar a escala médica por especialidade.

Com base no modelo, a equipe gestora tem conseguido prever a oferta e a demanda de médicos por especialidade nas UPAs da instituição com antecedência de 40 dias.

“Esse modelo, baseado nos chamados algoritmos de staffing, voltados para ajustar a equipe médica, funciona para algumas especialidades, como pediatria e clínica geral, mas menos para outras, como cirurgia e ortopedia”, disse Edson Amaro Júnior, responsável pela área de Big Data Analytics da instituição.

As clínicas de bairro do hospital, inauguradas nos últimos anos e voltadas a atendimento de especialidades básicas, também passaram a contar com um serviço de agendamento de consulta por reconhecimento facial desenvolvido pela Hoobox – uma startup apoiada pelo Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP.

Por meio de um aplicativo chamado Neonx, o paciente faz o cadastramento biométrico para o agendamento da consulta. Na clínica há um quiosque da Hoobox, que faz o reconhecimento facial e indica para o paciente o consultório onde será feita a consulta.

“A plataforma possibilita diminuir o tempo de espera do paciente e, para os planos de saúde, que são nossos principais clientes, evitar fraudes”, disse Paulo Gurgel Pinheiro, CEO da Hoobox.

O professor João Batista Florindo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou como estudos baseados em grandes volumes de imagens dos hospitais possibilitam desenvolver algoritmos de inteligência artificial que ajudam na identificação do câncer de pulmão.

“Os algoritmos podem subsidiar os médicos na detecção precoce desse tipo de câncer extremamente letal”, avaliou.

Já no hospital A. C. Camargo Cancer Center, especialistas em bioinformática têm usado técnicas baseadas em sequenciamento genético, combinadas com dados epidemiológicos, para tentar melhorar o entendimento de tumores hereditários.

Hoje, em apenas 20% dos pacientes é possível identificar qual gene faz com que vários membros de uma família desenvolvam o mesmo tipo de tumor, disse Emmanuel Dias Neto, pesquisador da instituição.

“Outro problema é que, às vezes, dois tumores que são idênticos também apresentam um comportamento completamente diferente. Ao entender melhor a evolução desse tipo de câncer também será possível predizer qual paciente poderá se beneficiar de um tratamento”, afirmou.

Segundo o pesquisador, apenas 20% dos pacientes com tumor hereditário respondem muito bem a um tratamento.

“Talvez os pacientes que respondem muito bem ao tratamento não precisassem ser submetidos à cirurgia. Mas não basta sequenciar seus genomas para ter essa resposta. É preciso ter uma série de outros dados, como os de epidemiologia, que incluem mais de 1,5 mil variáveis diferentes”, afirmou.

Os pesquisadores da instituição têm feito mais recentemente estudos sobre a microbiota intestinal para tentar entender como a composição de bactérias presentes no intestino afeta a metabolização de um determinado medicamento usado no tratamento de câncer.

“A microbiota tem um papel muito importante na resposta a um tratamento. Já há estudos que mostram que a presença de um determinado microrganismo no intestino leva à degradação de uma droga em menos de duas horas. Então, não adianta tentar tratar o paciente com essa bactéria, pois ele não vai responder. Será preciso, primeiro, tentar aniquilar o microrganismo”, avaliou.

Já a microbiota que ronda os pacientes hospitalizados é o alvo de uma tecnologia desenvolvida pela NanoChemTech.

A startup sediada em São José do Rio Preto está desenvolvendo, também com apoio do PIPE-FAPESP, um kit biossensor para detecção rápida de bactérias e fungos causadores de infecções hospitalares.

Em contato com um ambiente hospitalar, o biossensor, em fase de validação, identifica a presença de microrganismos causadores de infecções hospitalares, que acometem 10 entre 100 pacientes hospitalizados em países desenvolvidos, disse Gabriela Byzynski, pesquisadora e sócia da empresa.

“As técnicas concorrentes para detecção de microrganismos em ambientes hospitalares são caras e os resultados são demorados. A tecnologia que estamos desenvolvendo apresenta os resultados em 30 minutos, é específica para cada microrganismo e tem sensibilidade alta”, disse.

Durante o evento, também foram apresentados outros projetos apoiados pelo PIPE-FAPESP, como uma plataforma de inteligência artificial para avaliar o nível de toxicidade de compostos usados em cosméticos, medicamentos e produtos agrícolas, desenvolvida pela Altox, e um algoritmo de inteligência artificial para auxílio no diagnóstico de lesões hepáticas, criado pela Machiron, prestes a ser adotado pelo Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo.

 

Pesquisa interdisciplinar

O evento foi organizado pelos professores Claudia Bauzer Medeiros, da Unicamp, e Roberto Marcondes Cesar Junior, da USP, membros da coordenação do Programa de Pesquisa em eScience e Data Science, e Fábio Kon, também da USP e integrante da coordenação do PIPE.

“O evento buscou exemplificar a abrangência da eScience, com palestrantes de formação variada, como Economia, Medicina, Farmácia, Química, Engenharias, Biologia e Computação”, disse Medeiros.

“As apresentações cobriram um espectro que abrangeu desde aspectos globais de saúde pública até o nível genético, passando por usabilidade de equipamentos, hospitais, exames e inovação empresarial de vários tipos, com exemplos de pesquisas multidisciplinares envolvendo dados e competências típicas da eScience”, afirmou.

Um dos objetivos do programa eScience é justamente estimular a conexão entre pesquisadores de diferentes áreas para unirem suas ideias e desenvolverem aplicações com impactos econômicos e sociais, explicou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP.

Um dos exemplos apresentados no evento foi um sistema integrado de equipamento e software para diagnóstico parasitológico, desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Computação e da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e parceiros na indústria com apoio da FAPESP.

Denominado DAPIS (sigla de Diagnóstico Automatizado de Parasitos Intestinais), o sistema faz o diagnóstico de parasitas entéricos por análise computadorizada de imagens.

O sistema deve chegar ainda este ano a laboratórios das redes pública e privada de saúde do país.

“A computação tem desenvolvido técnicas de aprendizado interativo de máquina, como processamento, visualização e análise de imagem, e as áreas da saúde e da química têm criado técnicas para gerar lâminas de microscopia óptica mais ricas em parasitas e com menos impurezas fecais”, disse Alexandre Xavier Falcão, professor do Instituto de Computação da Unicamp e um dos criadores do DAPIS.

“Ao combinar os novos conhecimentos gerados por essas áreas com conhecimento da indústria, foi possível desenvolver esse sistema”, disse Falcão durante um painel sobre perspectivas de pesquisa e inovação em saúde, com a participação de Dias Neto, Saide Calil, professor da Unicamp, e Agma Juci Machado Traina, professora da USP.

Em sua palestra, Calil destacou os desafios da usabilidade de sistemas hospitalares, como os riscos de invasão por hackers, em razão de graves falhas de interfaces nesses sistemas, que demandam soluções urgentes.

“Os hackers podem explorar por acesso remoto esses sistemas e interromper as operações de assistência médica, por exemplo”, alertou.

Traina ressaltou a importância de assegurar a qualidade dos dados e como a gestão adequada de big data é a base para ciência e inovação digital em saúde.

“Além dos desafios computacionais, não podemos esquecer as questões éticas no uso de dados médicos”, disse.

 

Texto por Elton Alisson  |  Agência FAPESP