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- By Fábio Reis
Os efeitos da decisão que disponibiliza medicamento à base de maconha no SUS
Artigo por Mateus Vargas para Jota.
Medida força debate, mas avanço é limitado e depende da Anvisa, dizem especialistas. Só 1 medicamento será disponibilizado no SUS.
A Justiça Federal da Bahia determinou a inclusão de medicamentos à base de substâncias da maconha na lista de produtos que devem ser ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). is
A condição é que o fármaco esteja registrado pela Anvisa, o que exige comprovação de segurança e eficácia por estudos clínicos robustos e de alto custo. Neste desenho, apenas um medicamento seria hoje ofertado pela rede pública: o Mevatyl, de preço superior a R$ 2 mil no Brasil, indicado para espasticidade moderada a grave relacionada à esclerose múltipla.
Pelo trâmite normal, a incorporação de tratamentos ao SUS é avaliada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). O parecer é acolhido ou não pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (SCTIE).
Pacientes com epilepsia, por exemplo, não serão diretamente beneficiados por esta decisão. Nos casos em que é necessário uso de remédio ainda não registrado no Brasil, a saída seguirá sendo entrar na Justiça ou pedir autorização para importação direta. A Anvisa afirmou no final de 2018 que 6 mil pacientes já receberam aval para trazer a droga do exterior.
A judicialização sobre o tema tem ganhado força e já obrigou que o governo e planos banquem tratamentos, além de permitir o cultivo individual e por associação da planta para fins medicinais.
Na decisão da Bahia, a Justiça também determinou que dois pacientes devem ter acesso pela rede pública a tratamento com uso de produtos não registrados pela Anvisa.
Para especialistas ouvidos pelo JOTA, a mais recente decisão da Justiça sobre incorporar tratamentos ao SUS tem efeitos positivos, principalmente por promover o debate, mas é limitada. Avanços concretos dependem de a Anvisa aprimorar a forma de registro e cultivo destes produtos, dizem.
A leitura é que a agência reguladora deve decidir se irá simplificar registros de produtos à base de maconha. Pela regra atual, a empresa deve realizar estudos clínicos de custos elevados. Há ainda lacuna regulatória sobre plantio para produção e pesquisa no país.
Decisão pode confundir
Para Caio Abreu, CEO da Entourage, empresa de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos à base de Cannabis, apesar de “trazer rumo positivo”, a decisão acaba criando certa confusão ao ignorar alguns aspectos. Em suma, ele argumenta que:
há apenas um medicamento registrado;
a Anvisa dificulta desenvolvimento de novos produtos;
o controle de qualidade no Brasil está na contramão de outros países, por fazer exigências duras e similares ao de medicamentos comuns.
Segundo Abreu, é preciso dar tratamento especial aos produtos à base de maconha devido ao potencial terapêutico e o senso de urgência dos pacientes. Senão, “não avançaremos, pois estaremos entre a lentidão e demora para o registro de medicamentos e a baixa qualidade dos produtos disponíveis na maioria dos mercados de acesso”.
Omissão do poder público
A decisão da Bahia “é mais um capítulo da história da falta de regulamentação do uso medicinal e científico da Cannabis no país”, diz Beto Vasconcelos, sócio do XVV Advogados, ex-secretário Nacional de Justiça (2015-2016) e integrante da Comissão de Juristas para revisão da Lei sobre Drogas. Para Vasconcelos, a judicialização sobre o tema reflete o descompasso entre o poder público e a realidade.
O advogado afirma que a questão só será resolvida depois da regulamentação definitiva pela Anvisa do plantio, processamento e comercialização destes produtos.
A medida, disse Vasconcelos, está prevista na legislação pelo menos desde a edição da Lei 11.343/2006. “A falta de regulamentação tem sido entrave ao acesso à saúde, sobretudo, às pessoas que não podem pagar por importação cara de produtos. Além disso, também tem significado atraso no desenvolvimento científico e tecnológico e perda de competitividade de empresas brasileiras em um mercado cada vez maior”, concluiu.
Debate transversal
Para Viviane Sedola, CEO da Dr. Cannabis, plataforma que conecta pessoas a médicos que prescrevem e a profissionais que revendem canabinoides, mesmo que não seja o ideal, qualquer avanço sobre acesso a medicamentos à base de Cannabis é positivo. “Vai normalizando o tema, que vira cada vez menos chocante”, disse.
Sedola afirma que é preciso um debate transversal sobre impactos na agricultura, na saúde e em questões sociais. Ela defende como ideal uma regulamentação ordenada, paulatina e organizada. “Para que empresas, governo e pacientes possam se programar e trabalhar sobre o tema.”
Já o ativista Norberto Fisher disse que é preciso estar alerta para que o controle do Estado não “vire uma regulamentação que dificulta o acesso ao produto”. Ele é pai da Anny, primeira brasileira autorizada pela Justiça a importar um medicamento do tipo, e diretor de relações institucionais da Hempmeds Brasil, empresa que comercializa produtos à base de canabidiol.
Para Fisher, se o processo for bem conduzido, o governo pode ter economias ao fornecer o tratamento pelo SUS, pois o custo de uma diária em UTI chega a superar o valor mensal de alguns produtos.
‘Anvisa deve fazer escolhas’
O ex-diretor da Anvisa e consultor de empresas do mercado farmacêutico Ivo Bucaresky disse que a agência reguladora deve avançar no debate sobre simplificar ou não regras de registros de remédios à base de maconha. “O Brasil está disposto a fazer como o Canadá, Austrália, e de certo modo os EUA, que rebaixaram padrão de exigência para registrar medicamentos para o caso de Cannabis?”, questionou.
Sobre a decisão da Bahia, o ex-diretor da Anvisa argumentou que “os efeitos imediatos são mais simbólicos do que reais”, mas podem estimular a indústria a realizar pesquisas sobre o tema.
Para Bucaresky, é correta a lógica de que o SUS só forneça medicamentos registrados na Anvisa. A medida reduziria o abuso da judicialização, disse.
Anvisa estuda simplificar registro
Os diretores da Anvisa abriram, no final de 2018, iniciativa regulatória sobre enquadramento de terapias de uso tradicional (chinesa, florais, etc). A área técnica da agência estuda encaixar neste processo o debate sobre outros produtos que não tem comprovação de eficácia por meio de estudos clínicos robustos, como aqueles à base de Cannabis.
A ideia é verificar se estes produtos podem ser isentos de registro. A condição seria fazer forte monitoramento de mercado, para avaliar reações adversas, entre outros fatores. Se o assunto prosperar, a agência passará a autorizar a comercialização dos produtos dispensando análise de ensaios clínicos cobrados em medicamentos de maior risco sanitário.
Ao abrir a iniciativa, os diretores definiram que uma consulta pública sobre o tema seria proposta em até 120 dias, no final de março de 2019.
Na Anvisa, o debate sobre uso medicinal da maconha ganhou força em 2014, por pressão de pacientes. Trata-se de tema sensível por colocar a agência em confronto com o mundo político. Os diretores da Anvisa são indicados pelo presidente da República e sabatinados pelo senado.
Além de o debate sobre simplificar o processo de registro, há cobrança para a Anvisa se posicionar sobre o cultivo da maconha para fins de pesquisa e produção.
Em 2018 a agência ensaiou avançar sobre o tema. O ex-presidente da agência Jarbas Barbosa ameaçou chamar para si e pautar a discussão entre os diretores — o que não ocorreu.
Ex-diretor da Anvisa, Buckaresky disse que é preciso observar que há paradigmas diferentes entre produtos à base de maconha e outros de uso tradicional, como os da medicina chinesa. Alguns dos produtos derivados da planta, inclusive, chegam a ser enquadrados como suplementos alimentares em vez de medicamentos por agências reguladoras de fora do Brasil.
Para Abreu, CEO da Entourage, o problema é a lacuna regulatória para pesquisa e produção no Brasil. Ele afirma que a agência tem dificultado há meses a importação da matéria prima. Neste cenário “seguiremos debilitados, com produtos caros e de baixa qualidade”, disse.
O Ministério da Saúde informou em nota que recebeu, na última sexta-feira (8/3), notificação da Justiça e que a União deve recorrer da decisão dentro do prazo legal de 30 dias.
Até o momento, diz a nota, não foi apresentado nenhum pedido de incorporação de medicamentos à base de Canabidiol ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Artigo por MATEUS VARGAS
Publicado originalmente em Jota.