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- Categoria: Saúde
- By Fábio Reis
Comitê do Mercosul discute na Fiocruz aumento da produção de medicamentos
Atuação conjunta poderá fortalecer os países e dar frutos além de suas fronteiras; a necessidade de incorporar a questão de medicamentos, soros e vacinas para doenças negligenciadas às iniciativas do grupo; e a importância da produção em escala.
Mais de um ano após a última reunião presencial, representantes de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai no Comitê Ad Hoc Para Promover a Expansão da Capacidade Produtiva Regional de Medicamentos, Imunizações e Tecnologias em Saúde (CAHECPR) se encontraram, na última quinta-feira (16/2), na Fiocruz, em busca de ações estratégicas para problemas comuns. O evento não se limitou a discutir as deficiências que ficaram claras durante a pandemia de Covid-19: ele mostrou que uma atuação conjunta poderá fortalecer os países e dar frutos além de suas fronteiras; a necessidade de incorporar a questão de medicamentos, soros e vacinas para doenças negligenciadas às iniciativas do grupo; e a importância da produção em escala.
Criado em 2021, o CAHECPR busca analisar e mapear as capacidades produtivas, de pesquisa e desenvolvimento dos quatro países, além de propor iniciativas para melhorar o acesso a medicamentos, vacinas e tecnologias. A realização da 6ª Conferência Global de Ciência, Tecnologia e Inovação (G-Stic Rio), deu a oportunidade de organizar uma reunião satélite e elaborar “uma rota” de atuação. Representante do Brasil no comitê, o vice-presidente da Produção e Inovação em Saúde (VPPIS/Fiocruz), Marco Krieger, destacou o momento favorável para debater o assunto: unindo o aprendizado da pandemia e uma retomada da força do próprio Mercosul.
“Devemos sair deste encontro com uma listagem de produtos importantes para os nossos países, para organizarmos nosso trabalho com base numa visão estratégica dessa demanda”, disse Krieger, que estava ainda como presidente em exercício na ausência de Mario Moreira. “E estamos ampliando a discussão que começamos com medicamentos sintéticos para outros insumos, vacinas e kits diagnósticos”, acrescentou no auditório do CDHS.
Doenças sem fronteiras
Representando a Argentina, que ocupa a presidência pró-tempore do Mercosul, Pascual Fidelio reforçou que no bloco “não há pequenos ou grandes” e que “os problemas não têm fronteiras”. Ele destacou que a produção de medicamentos e insumos não é nova na região, lembrando os 122 anos da Fiocruz e o trabalho que na Argentina remonta às décadas de 40 e 50 do século passado. Assim como outros membros, ele destacou a necessidade de desenvolver trabalhos a médio e longo prazos que resistam às mudanças políticas. “Podem passar governos e políticos, investimentos podem cair, mas creio que teremos resultados a mostrar. Como disse Krieger na G-Stic, muitos falam de problemas. Estamos aqui para falar de soluções”, disse Fidelio, que dirige a Administração Nacional de Laboratórios e Institutos de Saúde Dr. Carlos G. Malbrán (Anlis).
Daniel Perez, da Divisão de Vigilância Sanitária do Paraguai, destacou a necessidade de seu país participar da comissão, embora ainda não tenha laboratórios públicos de produção. “Nossa participação é importante tanto do ponto de vista regulatório, como de fortalecimento de capital humano. Esperamos ter laboratórios públicos de produção no futuro. Estar aqui e trocar experiências com países produtores de vacinas e IFAs é enriquecedor”, disse.
Isabel Slepak - que falou em nome da representante do Uruguai, Leticia Perdomo, que não pôde comparecer - ressaltou a necessidade de promover o fortalecimento regional da produção de vacinas. “Por tudo o que vivemos na pandemia, é importante a atuação deste grupo, é importante compartilhar experiências. Espero que essa reunião dê frutos”, disse a diretora do Departamento de Medicamentos do Ministério de Saúde Pública uruguaio.
Modelo sustentável
O evento foi dividido em painéis, seguido por uma reunião dos membros do comitê no fim do dia. Diretor-substituto do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (Deciis/SCTIE), Kleber Barros trouxe a perspectiva do Ministério da Saúde brasileiro. Ele enfatizou que existe uma janela de oportunidades, mas que ela transita num campo complexo, que envolve questões regulatórias, necessidade de capacitação de alto nível e desenvolvimento de tecnologias. “Uma estratégia industrial demanda tempo. Precisamos ver os avanços que tivemos e o que podemos melhorar para torná-las efetivas.” Barros apontou desafios como a dependência da produção estrangeira, identificar os melhores modelos de cooperação, discutir a propriedade intelectual e a redistribuição geográfica das capacidades produtivas. “Precisamos preparar a região para fornecer aos nossos países respostas rápidas e efetivas a pandemias e emergências”, disse. “Um projeto que seja sustentável mesmo em momentos não pandêmicos.”
Presente na reunião, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) ofereceu apoio. Tomas Pippo, assessor regional para Políticas Farmacêuticas e Inovação, destacou as desigualdades na Covid-19. “A pandemia mostrou a alta dependência da América Latina numa questão em que a tecnologia está nas mãos de poucos. No mercado de vacinas, três empresas detêm mais de 50% de mercado, e a primeira tem acima de 10%.” Pippo destacou que é importante sanar o desabastecimento de medicamentos, como aqueles para terapias intensivas, e resgatar a confiança no sistema de saúde. “É particularmente grave quando se tem imunizantes e a população não aceita se vacinar.” Sobre a vacina de mRNA para Covid-19, que terá na Fiocruz e na empresa argentina Sinergium Biotech hubs para a região, ele destacou o modelo colaborativo adotado, de transferência de tecnologia diferente do tradicional, sem ter o lucro como objetivo.
Sonia Damasceno, da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério da Saúde (Aisa), falou sobre a importância do comitê e dessa segunda reunião presencial como espaço de cooperação, sugerindo ir além do Mercosul. Mediando aquela mesa, Jorge Costa, assessor da VPPIS, ressaltou que a primeira porta que se abriu para essa estratégia de fortalecimento da base produtiva e desenvolvimento tecnológico foi a do Mercosul, mas que ela não se restringe ao bloco, podendo ser expandida para América Latina e Caribe.
O painel sobre as capacidades tecnológicas e produtivas de Brasil e Argentina reuniu não só Fidelio, como trouxe Mauricio Zuma, diretor do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), e Ricardo Neves Oliveira, gerente de produção do Instituto Butantan. Zuma ressaltou que a pandemia mostrou a importância da produção local para não ficar nas mãos de multinacionais. Ele destacou que a produção de biológicos é complexa, que envolve capacitações e um ecossistema de educação, ciência e tecnologia para o qual parcerias são importantes. “A gente encontra profissionais muito qualificados, mas nem sempre prontos para as nossas competências. Por isso temos um mestrado em tecnologia de imunobiológicos, com resultados excelentes. São projetos fundamentais, mas com resultados a longo prazo.”
Zuma lembrou ainda que a indústria de biológicos precisa de escala de produção devido aos altos custos. Além de atender a 41% das necessidades do Programa Nacional de Vacinações (PNI), Bio-Manguinhos exporta vacinas, como a de febre amarela através das Nações Unidas para América Latina, África e alguns países da África. “Nem sempre a escala é garantida só pelo Ministério da Saúde. Temos que buscar atender outros mercados, principalmente em nossa região.”
Bio-Manguinhos produz 13 vacinas, sendo que somente de Covid-19 foram entregues 210 milhões de doses ao Ministério da Saúde, além de testes e reagentes. A capacidade da Fiocruz deverá aumentar quando estiver pronto o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde, no Campus Santa Cruz, com capacidade para produzir 120 milhões de frascos de vacinas e biofármacos por ano.
O Butantan trouxe a experiência em soros, vacinas e educação. Oliveira mostrou interesse em contribuir não só nas ações no bloco, como também com América Latina e África. O instituto produziu 124 milhões de vacinas em 2022, além de mais de 600 mil frascos de soro. Ele está também desenvolvendo vacinas para dengue e chicungunya, com a expectativa de alcançar o registro em dois anos. No que classificou como “as dores da pandemia”, Oliveira lembrou da dependência do Brasil em relação aos países desenvolvidos para a obtenção de equipamentos como filtros, bolsas, mangueiras. Outro problema é a retenção de mão de obra altamente qualificada que, depois de treinada, muitas vezes vai para a iniciativa privada ou para o exterior. Oliveira sugeriu ainda um alinhamento regulatório entre os países para facilitar a colaboração regional.
Já Fidelio pontuou que a Argentina tem quatro candidatas a vacina de Covid sendo desenvolvidas por laboratórios públicos e privados, e que somente 10% dos laboratórios locais produzem IFA. Ele destacou ainda a necessidade de trabalhar em medicamentos estratégicos para câncer, doenças degenerativas e negligenciadas, como leishmaniose. Ana Lia Allemand, diretora da Agência Nacional de Laboratórios Públicos (Anlap) da Argentina, contou que o país tem também investido em bolsas de estudos em doutorado e pós-doutorado em linhas estratégicas em saúde, como doenças negligenciadas e canabis.
Susto e oportunidade
No último painel, representantes da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquife) e da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina) falaram da capacidade do setor. Norberto Prestes, presidente executivo da Abiquife, disse que o mercado de IFA movimenta US$ 200 bilhões e tende a crescer 60% até 2028. “Quando se olha o cenário, parece não ter saída para nós. Sete por cento do consumo global de IFA estão na região, enquanto somente 1,6% da indústria farmoquímica está aqui. São 13 no Brasil, 16 na Argentina, 834 na China e 107 nos EUA. Na década de 90, tínhamos oito empresas produzindo antibióticos. Hoje é zero. Os números assustam, mas estudando o mapa mais a fundo, vemos a possibilidade de produzir na América Latina com números mais baixos. Está na hora de discutir em bloco e buscar soluções”. Como vantagem, ele indicou que os atritos entre EUA/China e a guerra entre Ucrânia e Rússia poderiam fazer a Europa voltar seu olhar para a região.
Soalheiro, da Abifina, destacou a necessidade de construir políticas de Estado, e não de governos, que resistam às mudanças políticas. Um estudo da Fiocruz com a Abifina mostrou que 77% dos produtos estratégicos para o Brasil não possuem fabricantes de insumos nacionais. A partir do estudo foi criada uma cesta de moléculas, levando em conta patentes prestes a expirar, os IFAs mais vendidos, medicamentos essenciais, a portaria de insumos estratégicos e a viabilidade de produção.
Para Krieger, a reunião do CAHECPR deixa encaminhamentos a serem tomados. No campo dos imunobiológicos, os projetos do Hub de mRNA e a transferência da vacina de febre amarela para o Anlis serão priorizados. Já na produção de IFAs, algumas oportunidades de trabalho complementar foram priorizadas a partir dos levantamentos liderados por Fiocruz, Abifina e Abiquifi, e a listagem dos medicamentos estratégicos também está sendo revisada. A ideia é apresentar o plano de trabalho conjunto já em junho deste ano na reunião dos ministros de Saúde do Mercosul.
O esforço da região começa a ser notado no exterior. “Fomos procurados na G-Stic para conversar sobre a possibilidade de parceria com a Europa, num possível apoio às nossas iniciativas. É importante mostrar ao mundo que o nosso trabalho é sério”, disse Krieger.
texto por Cristina Azevedo (Agência Fiocruz de Notícias)