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Há indicação de profilaxia para leptospirose em situações de enchentes e inundações?
Nas catástrofes como as enchentes que estão acontecendo no Rio Grande do Sul, não há consenso na literatura quanto à indicação de profilaxia da leptospirose.
Não há recomendação de utilização de antimicrobianos profiláticos para leptospirose como conduta de rotina [1,2]. Nas catástrofes como enchentes e inundações, não há consenso na literatura quanto à indicação de profilaxia, pois há poucos estudos que avaliaram a efetividade da profilaxia para leptospirose nessas situações específicas [3].
A maioria das pessoas infectadas desenvolverá quadros leves ou assintomáticos [2]. Cerca de 15% dos pacientes que desenvolvem leptospirose evoluem com manifestações clínicas graves [2]. Isso deve ser considerado frente à oferta de profilaxia em situações de catástrofe e de possível limitação de recursos, como medicamentos [4]. A prioridade deve ser garantir disponibilidade dos medicamentos para tratamento precoce de todos os casos suspeitos, prática já estabelecida nas recomendações do Ministério da Saúde [2].
A leptospirose é uma zoonose endêmica no Brasil e no Rio Grande do Sul, tornando-se epidêmica em períodos chuvosos, devido às enchentes associadas à aglomeração populacional, às condições inadequadas de saneamento e à infestação de animais infectados [2]. Neste cenário, o Ministério da Saúde não indica o uso de quimioprofilaxia como medida de prevenção em saúde pública em casos de exposição populacional em massa por ocasião de desastres naturais como enchentes, em virtude da insuficiência de evidências científicas sobre benefícios e riscos para um grande contingente populacional [1]. Contudo, o uso da quimioprofilaxia é discutido em situações de catástrofe climática, para populações restritas e de alto risco [5,6].
Racional teórico
De acordo com uma metanálise de estudos observacionais, fatores de risco significativamente associados à incidência de leptospirose após inundações incluem: pessoas do sexo masculino (odds ratio (OR) agrupado: 2,06, IC 95%: 1,29-2,83), exposição a animais de criação (OR agrupado: 1,95, IC 95%: 1,26-2,64), presença de ferida lacerada (OR agrupado: 4,35, IC 95%: 3,07-5,64) [7]. É importante destacar que há heterogeneidade quanto à definição da exposição relacionada às inundações [7]. Um dos estudos avaliado, um ensaio clínico não randomizado realizado na Tailândia, avaliou o uso de profilaxia para leptospirose com a administração de doxiciclina 200mg, em dose única, durante inundações urbanas [8]. Concluiu-se que a profilaxia pode ser eficaz na prevenção de leptospirose entre pessoas com feridas laceradas após exposição recente a enchentes, visto que esse foi o único fator de risco estatisticamente significativo para resultado laboratorial positivo para leptospira (infecção assintomática) e leptospirose sintomática. Neste estudo, pessoas expostas à inundação por período superior a 3 horas tiveram maior incidência de resultado laboratorial positivo para leptospira, mas a diferença na incidência de leptospirose sintomática não foi estatisticamente significativa [8].
Em revisão sistemática publicada pelo grupo Cochrane em 2024, foram incluídos estudos com pessoas com alto risco de desenvolver leptospirose: trabalhadores agrícolas em regiões endêmicas e veterinários; pessoas com outras ocupações de alto risco devido ao contato com água ou animais; viajantes em atividades de alto risco, como soldados e ecoturistas; e pessoas que enfrentam emergências, resultando em exposição potencial a água contaminada, como inundações, chuvas fortes ou tsunamis. Os autores concluem que as evidências são insuficientes para apoiar ou refutar o uso de profilaxia antibiótica para a prevenção da leptospirose, além de que a escolha e dosagem dos agentes antimicrobianos profiláticos também não são bem definidas [9]. Dados metanalisados de três estudos revelaram um risco aumentado de eventos adversos não graves (como dor epigástrica, vômitos e azia) com antibióticos, com evidências de qualidade muito baixa [9]. Já outra revisão sistemática, também publicada pelo Grupo Cochrane em 2012, concluiu que o uso semanal de 200mg de doxiciclina oral aumenta significativamente a incidência de efeitos adversos, como náuseas e vômitos, enquanto os benefícios em termos de redução da soroconversão para leptospira e das sequelas clínicas da infecção não são claros [10].
Guzmán Pérez et al. avaliaram as evidências disponíveis para o tratamento profilático contra a leptospirose com diferentes estratégias, incluindo oito estudos e totalizando 4.905 pacientes [11]. Apesar do número de participantes, há importante heterogeneidade entre os estudos. Quatro deles avaliaram a administração de 200mg de doxiciclina semanalmente [12–15]; dois estudaram o uso de penicilina oral diária; e dois realizaram profilaxia com dose única de doxiciclina no momento da exposição a água de enchente [8,16]. Um dos estudos também comparou a profilaxia com doxiciclina com dose semanal de azitromicina [15]. Os autores dessa revisão sistemática concluíram que não há benefício da dose semanal de 200 mg de doxiciclina em relação ao uso de placebo no número de novos casos de leptospirose sintomática (OR 0,20; IC 95%: 0,02-1,87; p = 0,16). Já uma dose única de doxiciclina na exposição a água de enchente poderia ter um efeito benéfico (OR 0,23; IC 95%: 0,07-0,77; p = 0,02), mas um dos estudos incluídos não foi randomizado [8]. Nenhum dos outros regimes de quimioprofilaxia testados demonstrou um efeito estatisticamente significativo no número de novos casos sintomáticos [11].
Apesar dos estudos citados, organizações internacionais descrevem que, para indivíduos com alto risco de exposição, a quimioprofilaxia pode ser útil em alguns ambientes, mesmo que as evidências para isso sejam fracas [6]. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em publicação de 2003, descreve que, mesmo que nem sempre previna a infecção, a doxiciclina confere algum grau de proteção a indivíduos de áreas não endêmicas expostos à leptospirose e pode reduzir a gravidade da doença e, portanto, a mortalidade e a morbilidade [17]. Já conforme o órgão estadunidense Centers for Disease Control and Prevention (CDC), alguns estudos demonstraram que a quimioprofilaxia com doxiciclina pode ser eficaz na prevenção de doenças clínicas e pode ser considerada para pessoas de alto risco e com exposições de curto prazo [5]. Mas essas publicações não são claras em definir quando considerar a prescrição de profilaxia.
Contexto da crise climática no Rio Grande do Sul
A Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul publicou nota conjunta com as Sociedades Brasileira e Gaúcha de Infectologia recomendando a não utilização de antimicrobianos profiláticos como conduta de rotina [18]. Apesar das limitações das evidências existentes, foi recomendado considerar a profilaxia para leptospirose em pessoas de alto risco, como: equipes de socorristas de resgate e voluntários com exposição prolongada a água de enchente, nos quais os equipamentos de proteção individual não são capazes de prevenir a exposição; e pessoas expostas a água de enchente por período prolongado com avaliação médica criteriosa do risco dessa exposição. No referido documento, recomenda-se utilizar preferencialmente doxiciclina, e a azitromicina é considerada alternativa, conforme apresentado no Quadro 1.
Quadro 1 – Quimioprofilaxia para leptospirose
Indicações | Esquema preferencial | Esquema alternativo |
---|---|---|
Adultos com exposição única de alto risco: exposição à água de enchente por período prolongado com avaliaçãomédica criteriosa do risco dessa exposição. | Doxiciclina¹ 200mg, dose única. | Azitromicina 500mg, dose única. |
Adultos que realizam resgate/socorristas: equipes de socorristas de resgate e voluntários com exposição prolongada a água de enchente, nos quais os equipamentos de proteção individual não são capazes de prevenir a exposição. | Doxiciclina¹ 200mg, 1x/semana, enquanto ocorrer a exposição. | Azitromicina 500mg, 1x/semana, enquanto ocorrer a exposição. |
Crianças: exposição a água de enchente por período prolongado com avaliação médica criteriosa do risco dessa exposição. | Doxiciclina² 4mg/kg, dose única (máximo: 200mg). | Azitromicina 10mg/kg, dose única (máximo: 500mg). |
Fonte: Sociedade Brasileira de Infectologia, Sociedade Gaúcha de Infectologia e Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (2024) [19].
¹ Profilaxia com doxiciclina não deve ser feita em gestantes e lactantes [19].
² Costumava-se recomendar cautela em crianças menores de 8 anos devido à possibilidade de alterações dentárias, mas estudos recentes orientam o uso quando necessário, por curtos períodos (menos de 21 dias) [20,21].
No contexto dessa indicação, sugere-se avaliar fatores de risco para leptospirose, como tempo de exposição contínua à água de enchente e presença de ferimento no momento da exposição [7]. Apesar de não estar claro na nota ou na literatura como se define tempo de exposição contínua à água de enchente, recomenda-se utilizar tempo de exposição maior do que 3 horas, especialmente quando não foram utilizados equipamentos de proteção individual e se houver lesões de continuidade na pele [8].
Ressalta-se que a profilaxia não é 100% eficaz e, mesmo em uso de quimioprofilaxia, a pessoa pode desenvolver leptospirose [19]. Para garantir a maior eficácia da antibioticoterapia contra a leptospirose e reduzir a gravidade da doença, o início do tratamento deve ser o mais precoce possível, idealmente na primeira semana do início de sintomas [22]. Assim, deve-se estar atento aos sinais e sintomas de leptospirose, como febre, cefaleia e mialgia, especialmente caso eles surjam em até 30 dias após contato com água de enchente, alagamento, lama ou coleções hídricas ou na presença de outros antecedentes epidemiológicos [2]. Além do manejo terapêutico, é importante que estes casos sejam notificados, principalmente para subsidiar medidas de prevenção e controle e planejamento da assistência [1].
Em meio à situação epidemiológica atual, deve-se estar atento à possibilidade de diagnósticos de leptospirose [1]. A definição de caso suspeito de leptospirose pode ser encontrada aqui. Entre os diagnósticos diferenciais principais com leptospirose no contexto atual estão dengue e hepatite A [2,23]. O Quadro 2 apresenta as principais características clínicas e laboratoriais de leptospirose, dengue e hepatite A. Para mais informações sobre dengue, clique aqui.
Quadro 2 – Principais características clínicas e laboratoriais de leptospirose, dengue e hepatite A
Sinais/sintomas | Leptospirose | Dengue grupos A/B¹ | Hepatite A | ||
---|---|---|---|---|---|
Febre | Intensidade | Alta (>38ºC) | Alta (>38ºC) | Baixa | |
Duração (dias) | 7-14 | 2-7 | Fase prodrômica (5-7 dias) |
||
Exantema | Raro | 3º ao 6º dia | Ausente | ||
Mialgia | Frequente, principalmente em panturrilhas |
Frequente | Raro | ||
Artralgia (frequência) | Raro | Moderado | Raro | ||
Edema articular | Ausente | Raro | Raro | ||
Sufusão conjuntival | Moderado | Raro | Ausente | ||
Icterícia | Raro | Ausente | Frequente (adultos) |
||
Náuseas/vômitos/diarreia | Frequente | Moderado | Frequente | ||
Dor abdominal | Raro | Raro | Frequente | ||
Hepatomegalia | Raro | Ausente | Frequente | ||
Cefaleia | Frequente | Frequente | Raro | ||
Linfonodomegalia | Raro | Raro | Ausente | ||
Hemorragia | Raro | Raro | Raro | ||
Acometimento neurológico | Raro | Ausente | Raro | ||
Contagem de leucócitos | Leucocitose | Leucopenia | Variável | ||
Linfopenia (frequência) | Moderado | Raro | Variável | ||
Trombocitopenia ≤ 140.000 plaquetas/mm³ |
Raro | Frequente | Raro | ||
Hipocalemia < 3,6mmol/L | Frequente | Ausente | Raro | ||
Hipercreatininemia > 1,3mg/dL | Frequente | Raro | Raro |
Fonte: TelesssaúdeRS-UFRGS (2024), adaptado de: Ministério da Saúde (2014, 2023) Lai e Chopra (2024), Dynamed (2024), Akarsu et al. (2008) e Mount (2022) [23–28].
¹ Casos de dengue sem sinais de alarme e sem sinais de gravidade. Sinais de alarme: dor abdominal intensa (referida ou à palpação) e contínua; vômitos persistentes; acúmulo de líquidos (ascite, derrame pleural, derrame pericárdico), hipotensão postural e/ou lipotimia, hepatomegalia maior que 2cm do rebordo costal; sangramento de mucosas; letargia e/ou irritabilidade; aumento progressivo do hematócrito. Sinais de gravidade: extravasamento grave de plasma, levando ao choque evidenciado por taquicardia; extremidades distais frias; pulso fraco e filiforme; enchimento capilar lento (>2 segundos); pressão arterial convergente (<20mmHg); taquipneia; oliguria (<1,5mL/kg/h); hipotensão arterial (fase tardia do choque); cianose (fase tardia do choque); acumulação de líquidos com insuficiência respiratória; sangramento grave; comprometimento grave de órgãos.
Este conteúdo é destinado para profissionais de saúde e tem por objetivo fornecer
informações atualizadas e baseadas em evidências científicas
Referências:
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Fonte:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, TelessaúdeRS. Rio Grande do Sul, Secretaria Estadual da Saúde. Há indicação de profilaxia para leptospirose em situações de enchentes e inundações? Porto Alegre: TelessaúdeRS-UFRGS; 7 maio 2024 [citado em “dia, mês abreviado e ano”]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/telessauders/perguntas/ha-indicacao-de-…tes-e-inundacoes/