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- Categoria: Estudo e Pesquisa
- By Fapesp
Nanopartículas são modificadas para combater câncer, vírus e bactérias de modo seletivo
Um grupo do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) liderado por Mateus Borba Cardoso vem trabalhando, com apoio da FAPESP, no aperfeiçoamento de nanopartículas para serem usadas no tratamento de tumores, infecções e inflamações. A proposta é levar fármacos em doses ideais diretamente às células doentes, evitando danos desnecessários ao organismo.
Para que esse objetivo se torne viável, porém, dois obstáculos precisam ser superados. O primeiro é evitar que proteínas grudem na superfície das nanopartículas quando elas entram em contato com o sangue do paciente, formando estruturas conhecidas como coroas. Como explicou Cardoso, o risco nesse caso seria a coroa de proteínas de uma partícula se unir à de outras, criando um efeito em rede que reduz a capacidade de ação das nanopartículas e que pode levar ao entupimento de vasos. O segundo desafio é garantir a estabilidade das nanoestruturas em fluidos como o plasma sanguíneo.
Novas estratégias para solucionar esses problemas foram descritas pelo grupo do CNPEM em artigos publicados recentemente nos periódicos ACS Applied Materials Interfaces e Journal of Colloid and Interface Science – sendo que este último dedicou um destaque de capa ao trabalho.
Os dois artigos descrevem a ação de partículas com funcionalizações duplas, ou seja, que tiveram a superfície modificada para, ao mesmo tempo, evitar a formação da coroa de proteínas e garantir a estabilidade coloidal no fluído sanguíneo.
“Agora que sabemos sobre a possibilidade de trabalhar com estruturas duplamente funcionalizadas, conseguimos identificar a proporção entre os diferentes grupos químicos que favorecem a estabilidade das nanopartículas e evitam a toxicidade e a formação da coroa de proteínas”, disse Cardoso à Agência FAPESP.
No trabalho intitulado Dual Functionalization of Nanoparticles for Generating Corona-Free and Noncytotoxic Silica Nanoparticles, publicado pelo ACS Applied Materials Interfaces, o grupo descreve a busca pela proporção ideal de dois grupos químicos usados na dupla funcionalização: o zwitteriônico e o amino.
“O grupo zwitteriônico é formado por estruturas que apresentam cargas positivas e negativas que se neutralizam [ficando, consequentemente, com uma carga quase neutra]. São essas estruturas que impedem a formação de coroa e que mantém a estabilidade coloidal do sistema. Já o grupo amino serve, potencialmente, para ancorar anticorpos que direcionam as partículas às células de interesse, mas é sabido que ele induz a formação de coroa, desestabiliza as partículas e tem toxicidade considerável. Buscamos, então, identificar a proporção ideal entre esses dois componentes”, contou Cardoso.
O experimento foi realizado inicialmente em células de mamífero (fibroplastos de camundongos). Em seguida, foram feitos ensaios de hemólise com sangue humano fornecido pelo Hemocentro da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp).
“Nesse caso, o objetivo foi avaliar se as partículas induziam o rompimento dos glóbulos vermelhos do sangue, o que as tornaria contraindicadas para uso terapêutico”, explicou o pesquisador.
“Os resultados mostraram que nanopartículas contendo uma fração significativa de zwiteriônicos na superfície não induzem a hemólise e são potencialmente seguras para administração intravenosa”, acrescentou.
O segundo estudo, Shielding and stealth effects of zwitterion moieties in double-functionalized silica nanoparticles, divulgado no Journal of Colloid and Interface Science, descreve o uso de estruturas zwiteriônicas na retenção de compostos formadores de coroa.
“Essa camada zwiteriônica forma uma espécie de membrana de água ao redor da nanopartícula, fazendo com que ela não seja identificada pelos mecanismos de defesa do organismo”, explicou Cardoso.
Segundo o pesquisador, algumas das proteínas que tendem a grudar na superfície das partículas quando elas entram em contato com o sangue atuam como sinalizadoras do sistema imune, atraindo ao local células de defesa, como os macrófagos, que tentam eliminar aquele corpo estranho.
“Evitar a formação da coroa de proteínas, portanto, é fundamental para a partícula passar despercebida pelos mecanismos de defesa do organismo. Estamos buscando obter essas partículas ‘invisíveis’. Mas, será que sendo ‘invisíveis’ elas conseguem interagir com alguma estrutura biológica?”, indagou Cardoso.
Para solucionar a dúvida, foram feitos experimentos de funcionalização dupla contendo grupos zwiteriônicos e um outro grupo de atividade biológica – chamado pelos pesquisadores de BAGs (grupos biologicamente ativos, na sigla em inglês).
“Testamos as propriedades hemolíticas [risco de causar hemólise], a capacidade de formação de coroa e se as nanopartículas ‘invisíveis’ seriam capazes de interagir com diferentes estruturas biológicas”, explicou Cardoso.
O efeito foi avaliado in vitro em culturas de células de mamíferos, de bactérias da espécie escherichia coli e de vírus zika. Os resultados mostraram que, ao mesmo tempo em que mantém escondidos os compostos formadores de coroa, a membrana de água também não permite que as nanopartículas interajam com células de animais, vírus ou bactérias – bloqueando, portanto, qualquer ação terapêutica.
O próximo passo para tentar solucionar o impasse, segundo Cardoso, será fazer com que os grupos biologicamente ativos saiam dessa camada de hidratação para que possam ser reconhecidos de maneira seletiva.
“Tentaremos inserir os BAGs ou outras estruturas com atividade biológica comprovada para fora do domínio dos zwiteriônicos e, para isso, o grupo amino será essencial”, disse.
Avanço da nanomedicina
Pesquisada desde o início da década de 1980, a nanomedicina é baseada na inserção de medicamentos em nanopartículas – elementos capazes de transportar fármacos pela corrente sanguínea –, que podem ser formadas por conjugados de proteínas, estruturas lipídicas sólidas e outras substâncias. A estrutura mais usada pela indústria farmacêutica ainda é a composta por lipossoma, um tipo de membrana muito parecido com as que envolvem as células do corpo humano.
“As nanopartículas, em geral, conseguem aumentar o tempo de trânsito de um medicamento no organismo de seis para oito ou até doze horas, dependendo do fármaco e da nanopartícula, o que pode trazer melhores resultados aos tratamentos”, disse Cardoso.
Apesar de não apresentarem toxicidade ao organismo, os lipossomas não são capazes de transportar medicamentos até pontos específicos, causando efeitos colaterais indesejados, como a queda de cabelo no caso dos tratamentos de câncer, por exemplo.
As nanopartículas desenvolvidas pelos pesquisadores do CNPEM são dotadas de estruturas rígidas, diferentes dos lipossomas. Compostas por uma camada nuclear formada principalmente por sílica, elas apresentam uma estratégia diferente, pois abrigam um núcleo revestido com grupos químicos que reagem apenas em locais específicos, passando a atuar de modo seletivo. “É como se fosse uma bola de tênis em que o centro é composto pela sílica e, o tecido que a reveste, pelas funcionalizações”, explicou Cardoso.
O grupo do CNPEM já vinha demonstrando a viabilidade dessa estratégia para o tratamento do câncer, com o transporte de compostos quimioterápicos apenas às células tumorais, evitando a interação com as células sadias. Também se mostrou eficiente na inativação do vírus HIV in vitro.
O artigo Dual Functionalization of Nanoparticles for Generating Corona-Free and Noncytotoxic Silica Nanoparticles, de Jessica Fernanda Affonso de Oliveira, Francine Ramos Scheffer, Ryan F. Landis, Érico Teixeira Neto, Vincent M. Rotello e Mateus Borba Cardoso, pode ser lido em pubs.acs.org/doi/10.1021/acsami.8b12351.
O artigo Shielding and stealth effects of zwitterion moieties in double-functionalized silica nanoparticles, de Lívia M. D. Loiola, Marina Batista, Larissa B. Capelettia, Gabriela B. Mondo, Rhubia S. M. Rosa, Rafael E. Marques, Marcio C. Bajgelman, Mateus B. Cardoso, pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0021979719307179?via%3Dihub.
Por Sidnei Santos de Oliveira | Agência FAPESP